Conforme já tivemos a oportunidade de anunciar, a Fizzlab foi contactada para participar em mais um estudo relacionado com envelhecimento de cerveja e a sua estabilidade de prateleira ao longo do tempo. Queremos desde já agradecer ao aluno finalista da Licenciatura em Química da Universidade do Minho, Diogo Barros Gonçalves, por toda a confiança depositada e congratula-lo pelo término da sua licenciatura. Neste artigo iremos abordar o estudo realizado de forma resumida, com diversas citações do texto base que pode ser consultado no documento original abaixo.
Envelhecimento Forçado
Este trabalho teve como objectivo estudar cervejas sujeitas a envelhecimento forçado, através da exposição a altas temperaturas, sendo realizada uma monitorização da evolução de alguns off-flavours através das técnicas de análise cromatográfica. No que concerne à Fizzlab, esta ficou encarregue da avaliação sensorial que foi posteriormente correlacionada com os valores obtidos nas análises químicas.
Como é sabido, a exposição de cervejas a temperaturas elevadas acelera as reacções de oxidação (reacções entre o oxigénio presente na cerveja e os seus compostos), uma vez que estas reacções são influenciadas pela temperatura. Após a fermentação do mosto de cerveja pelas leveduras, a presença de oxigénio tem um impacto negativo ao longo do tempo na cerveja, desenvolvendo-se defeitos (na sua maioria) que, sensorialmente falando, vão desde cartão, cereal velho, queijo, vínico, caramelo, maçãs verdes e mesmo vinagre. É pois importante, uma cuidada armazenagem do produto acabado, sendo um dos principais problemas na actual cadeia de distribuição de cerveja artesanal no nosso país.
As cervejas sujeitas a envelhecimento forçado foram todas do estilo International Pale Lager de uma cervejeira nacional, tendo sidas sujeitas às temperaturas de 40 e 50 ºC. A razão destas temperaturas elevadas está relacionada com o trabalho de Li et al. (1), que estabeleceu uma relação entre a temperatura na cerveja e a velocidade das reações químicas responsáveis pelo desenvolvimento de características organolépticas de uma cerveja envelhecida. Este autor condensou os resultados na tabela abaixo:
Assim e exemplificando, uma cerveja sujeita a uma temperatura de 40 ºC durante um dia, irá apresentar características químicas semelhantes a uma cerveja envelhecida à temperatura ambiente durante 8 dias (ou aprox. 5 dias a 35 ºC durante um dia). Daqui se pode retirar a extrema importância da temperatura de armazenamento, pois uma cerveja armazenada a 35 ºC durante apenas 5 dias, irá ser semelhante a uma cerveja envelhecida durante 25 dias à temperatura ambiente (2).
Com esta técnica é possível antecipar a formação de compostos em espaços de tempo mais curtos, permitindo o desenvolvimento de metodologias que os mitiguem.
Compostos Estudados
Os compostos estudados nas cervejas sujeitas a este regime de envelhecimento forçado foram:
- Trans-2-nonenal – Um aldeído que se caracteriza pelos descritores sensoriais de papel molhado ou cartão. O seu limiar de percepção é bastante alto, sendo apenas necessários entre 0.05 e 0.1 microgramas de composto por litro de cerveja.
- Ácido acético – Um produto final derivado do caminho de oxidação do etanol. Este ultimo, na presença de oxigénio, transforma-se em acetaldeído e este, por sua vez e também por acção do oxigénio, em ácido acético. Caracteriza-se por notas avinagradas/ácidas, estando o seu limiar de percepção na ordem dos 200 mg de composto por litro.
- Furfural – um composto que é produto das reacções de Maillard, tendo sido estas ultimas a explicação para a sua presença em cervejas envelhecidas. Apresenta como descritores caramelo e a velho, sendo o seu limiar de percepção da ordem dos 15 mg por litro.
- 4-vinilguaiacol – um fenol considerado benéfico em vários estilos de cerveja, contudo é também considerado defeito especialmente em lagers. O seu descritor mais comum é cravinho da índia, tendo proveniência na decomposição (descarboxilação) do ácido ferúlico presente no malte de cevada (e em maior concentração no malte de trigo), pelas leveduras. Esta decomposição do ácido ferúlico continua a ocorrer ao longo do envelhecimento do produto. O seu limiar de percepção em cervejas lager situa-se por volta dos 0.3 mg de composto por litro.
Resultados
Trans-2-nonenal (cartão)
Este composto foi monitorizado através de cromatografia gasosa, existindo um aumento progressivo até cerca de 5 meses, começando a decair a partir dessa altura, situação verificada para as amostras envelhecidas a 40 e 50 ºC.
A análise sensorial realizada pelo painel da Fizzlab foi de encontro ao medido para a amostra envelhjecida a 40 ºC contudo, para a amostra envelhecida a 50 ºC, foi verificado um aumento continuo deste composto indo contra os resultados obtidos. Tal facto poderá dever-se à dificuldade em caracterizar de forma quantitativa o nível percepcionado deste composto nas diversas amostras.
Ácido acético (vinagre)
O ácido acético foi monitorizado por cromatografia líquida (HPLC-UV), tendo sido detectado o seu aumento a partir dos 7 meses de envelhecimento.
Na análise sensorial não foi detectado este composto uma vez que a sua concentração de cerca de 20 microgramas por litro era bastante mais baixa que o limiar de detecção.
Furfural (caramelizado, velho)
Novamente, este composto foi monitorizado através de cromatografia, evidenciando-se um aumento significativo da sua produção a partir dos 2 meses de envelhecimento, sendo esta produção em maior quantidade para as amostras envelhecidas a 50 ºC.
Na análise sensorial, foi detectado este composto nas amostras a partir dos 2 meses de envelhecimento, com uma correlação aproximada nas amostras a 40 ºC. Contudo, nas amostras a 50 ºC, esta correlação não foi tão directa, tendo-se percepcionado uma maior concentração na amostra de 12 meses.
De notar que a concentração de furfural presente nas amostras (máximo de cerca de 90 microgramas por litro) era muito inferior ao limiar de percepção reportado na literatura (15 mg por litro), evidenciando que o painel da Fizzlab é bastante sensível a este composto, encontrando-se bem calibrado e treinado para a sua detecção (ou outros compostos da reacção de Maillard associados, com características organolépticas semelhantes).
4-vinilguaiacol (cravinho)
Através da mesma técnica de monitorização, este composto surgiu em razoável quantidade logo a partir do 1º mês de envelhecimento, para as amostras a 50 ºC, surgindo apenas a partir do 4º mês para as amostras envelhecidas a 40 ºC.
Pode-se concluir que a produção deste composto é bastante sensível à temperatura, ocorrendo mais cedo para temperaturas mais elevadas.
Sensorialmente, o painel da Fizzlab detectou este composto apenas a partir dos 5 meses para as amostras envelhecidas a 50 ºC e apenas na mais envelhecida para o regime de envelhecimento a 40 ºC. Novamente, de notar que as concentrações medidas por cromatografia eram substancialmente inferiores ao limiar de percepção da literatura, evidenciando mais uma vez e a par do furfural, que o painel é bastante sensível a este composto, encontrando-se bem calibrado.
Discussão dos Resultados via Análise Sensorial
“A análise sensorial elaborada pelo painel de avaliação denota, conforme abordado, variações significativas consonantes com os resultados analíticos para a maioria dos compostos. Adicionalmente, foram também avaliadas as variações sensoriais do amargor e do doce. Como esperado, tanto as amostras envelhecidas num regime de temperatura de 40 ºC como as amostras envelhecidas num regime de temperatura de 50 ºC exibiram, simultaneamente, uma diminuição do amargor e um aumento do doce.”
Análise de Variação da Cor
Foi também realizada a observância da variação da cor através de um espectrofotómetro, com as resultados abaixo.
Este gráfico indica a diferença de cor entre a amostra envelhecida e uma amostra padrão, podendo-se observar que, em comparação com o envelhecimento a 40 ºC, o envelhecimento a 50 ºC leva a um aumento mais rápido da diferença de cor entre a amostra inicial e as amostras envelhecidas. De notar que a amostra mais envelhecida apresenta uma diferença de cor de quase 3 unidades, sendo por isso passível de percepção por um observador inexperiente (3).
Por outro lado, a amostra mais envelhecida no regime de temperatura de 40 ºC evidenciou uma diferença de cor de 1,7, o que implica que apenas observadores com experiência fossem capazes de reparar na diferença de cor entre a amostra padrão e as amostras envelhecidas.
Importa reter que a oxidação da cerveja não está apenas relacionada com aspectos sensoriais relacionados com aroma e sabor, mas também com a sua cor. Esta variação de cor em amostras de cerveja mais claras é mais perceptível, sendo mais uma razão para o seu correcto acondicionamento.
Conclusões
Como já temos vindo a defender, o correcto acondicionamento de produto acabado é de extrema importância para a sua longevidade, devendo esta ficar no frio a cerca de 8 a 9 ºC (e assim reduzir também a formação de turvação pelo frio permanente). A redução da introdução de oxigénio em todo o processo produtivo é também de extrema importância, principalmente em evitar arejamento na parte quente e reduzir ao máximo na parte fria, principalmente quando se recorre a técnicas de “dry-hopping” e no engarrafamento.
Saindo da cervejeira, estas condições devem-se manter até ao momento de compra pelo consumidor, seja pelo transporte em carrinhas refrigeradas, seja pela sua venda em arcas frigoríficas verticais como é corrente em países com uma cultura cervejeira mais antiga.
Existe, assim, uma necessidade premente de sensibilização de todos os envolvidos para que o produto chegue ao consumidor final no pico das condições e se estabelecer uma forte cultura de qualidade na cerveja artesanal.
Mais uma vez congratulamos o Diogo Gonçalves pelo trabalho desenvolvido e a sua confiança na Fizzlab, e a Universidade do Minho pela contínua aposta em estudos relacionados com cerveja.
O documento completo pode ser descarregado neste link.
(1) – H. Li, F. Liu, “A study on kinetics of beer ageing and development of methods for predicting the time to detection of flavour changes in beer”, Journal of The Institute of Brewing, 121 (2015), 38–43.
(2) – Normalmente tida como temperatura de conforto por volta dos 20 ºC.
(3) – W. S. Mokrzycky, “Colour difference ΔE – A survey”, Olsztyn, 2012